segunda-feira, março 09, 2009

Adélia e a filha (ainda a propósito do "Dia da Mulher")

Apesar de ser filha de Mãe solteira, Marta foi criada como uma princesa. Apesar, ou por causa disso? Ninguém sabe ao certo, mas era manifestamente visível a forma como Adélia sacrificava toda a sua vida em função da filha. Quando Paulo, o único homem que amou na vida, logo que a soube grávida, a abandonou, não chorou uma lágrima, compreendeu e aceitou, que para ele, tinha sido apenas uma namorada temporária, mero entretenimento enquanto estudante de Coimbra. Como é uma rapariguinha sem estudos, simples balconista numa loja de discos, poderia querer que ele casasse com ela e ser apresentada à família, gente apalaçada da capital? Claro que ele fez todos os possíveis para a dissuadir de levar ao fim a gravidez: “Se fores para frente com essa teimosia, nunca mais me verás! Eu não vou reconhecer essa criança, nem dar o meu nome. Vais ter um filho de pai incógnito? Assumes essa responsabilidade?” Naquele tempo ainda se podiam fazer destas coisas. Adélia não chorou, aliás, nunca a vi chorar, voltou para casa da mãe, com a morte na alma, mas, foi no auge daquele abandono, daquele sofrimento, que começou a sentir mexer qualquer coisa dentro do seu ventre, como se o seu bebé dissesse: “Mãe estou aqui!” E pronto, se tinha tido dúvidas, elas acabaram naquele momento. A decisão estava tomada - com homem, sem homem, com pai ou sem ele, iria ter aquele filho. E teve: uma filha, a Marta e a partir daí, a sua vida teve um destino e um norte. Apesar do que tinha dito antes, Paulo, perfilhou a menina. Não foi muito difícil convencê-lo - era prática muito comum e até ficava bem a um morgado, filho de família, ter um filho bastardo! E, destino curioso, não teve filhos do casamento. Dava a Marta uma mesada e quando a menina foi para a escola, exigiu direitos, poucos, até porque a esposa não tinha grande paciência para a aturar: apenas uma curta visita nas férias do Natal.Adélia, essa, viveu para a filha, como tinha vivido para Paulo, com uma dedicação absoluta e sem limites. Com o pouco dinheiro que ganhava e com a mesada de Paulo, criou Marta como uma menina mimada e por ela fazia sacrifícios terríveis a raiar o absurdo - um dia, em que fui lá a casa, na hora de jantar, vi-a preparar para a filha um grande bife e ela comeu uma pontinha do mesmo e pão molhado no molho. Chamei-lhe a atenção para aquele desequilíbrio, disse-lhe que devia gostar mais de si mesma, deixar de ser um farrapo nas mãos da filha, senão um dia, nem a filha, nem ninguém, gostaria dela! Dei-lhe exemplos de outras mulheres que conhecia e que por se terem anulado, como mulheres e como pessoas, acabaram por ser desprezadas até pelos próprios filhos. Mas Adélia não aceitava nada que bulisse com aquele amor. Esquecia-se completamente de si. Todo o fôlego que tinha, todo o dinheiro que ganhava, tudo, absolutamente tudo, era para a filha.No emprego, era duma competência enciclopédica exemplar. Quando alguém queria um disco raro, consultava-a e ela resolvia tudo. Tinha um numeroso grupo de clientes e amigos que só compravam discos depois de a ouvir. Entretanto Marta, quando chegou á idade, foi para a Universidade e quando acabou o curso, arranjou um namorado e casou-se. Adélia foi viver com o casal, e continuou a ser o que sempre tinha sido: a “escrava” da filha. Assim viveram até o marido da filha se fartar da presença dela, do trabalho dela, da voz dela, de tudo o que ela era, e disse à mulher: ”Ou ela ou eu”. A filha optou, e, Adélia, regressou sozinha à sua velha casa. Passado pouco mais de um ano, morreu duma doença que nenhum médico diagnosticou. Publicado também aqui.

Nota: os nomes são fictícios.

4 Comments:

Blogger Maria Silva said...

Será que conheci essas personagens no "nosso" beco ? A "estória" não me é estranha.

9:11 da tarde  
Blogger Rui Coutinho said...

Conheci-a. Grande Mulher. E ela bem merece esta homenagem e prova de amizade. Sem ficção!

2:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

as tuas crónicas são homenagens de memórias intactas e Memória exacta como a tua. Parabéns, Fátima.

9:20 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

as tuas crónicas são homenagens de memórias intactas e Memória exacta como a tua. Parabéns, Fátima.

9:20 da tarde  

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