Agora, há uma escada no lugar da janela daquele quarto

Durante muito tempo ela recusara-se a passar junto daquela casa: daquela casa onde viveu os mais tristes dias, da sua juventude. Ela sabia que se lá passasse, tudo voltaria a sua memória. Voltariam os fantasmas, os sonhos/ pesadelos, as humilhações, a rebelião, enfim, o passado que ela queria esquecer. Mas hoje, ao fim de tantos anos, resolveu ultrapassar tudo isso, e passou por lá. Passou de mansinho, com medo de passar, mas passou e olhou de olhos bem abertos, olhou bem, pausadamente, para tudo aquilo, que era, de certa forma, o sitio onde durante anos, se desenrolara uma grande parte da sua história de vida. Mas, e como nesta vida tudo passa, a casa já não existe como casa – ali, naquele lugar, nesse lugar receado, estão agora a construir um prédio alto. Já não viu, nem verá mais, a janela do seu quarto, aquele minúsculo quarto, onde chorava mais do que dormia, noites e noites a fio. No sítio do quarto, daquele quarto, onde tantas vezes descera ao inferno da solidão, há agora uma escada. Pronto, acabou, acabou. Acabou? Ela pensa que sim. É a altura de se reconciliar com a vida e caminhar por todas as ruas de coração aberto. Afinal, e embora ela não acredite na justiça cósmica, os muros da sua masmorra ruíram e os seus algozes morreram.

PS- Para o meu sobrinho Bruno. Ele sabe porquê.