Eu nunca tive sorte com rifas
Eu nunca tive sorte ao jogo, a nenhuma espécie de jogo. Quando penso nisso, lembro-me que no tempo de Salazar havia uma lei que proibia as pessoas de andarem descalças na cidade, e, contava-se, lá na minha aldeia, que a minha prima Júlia, um dia veio descalça à cidade (aliás como andava sempre), vender frutas, hortaliças, ovos, para assim poder comprar umas roupas para os filhos. Andava ela de cesto à cabeça, tentando vender os seus produtos, quando um diligente polícia a lobrigou de pés descalços e logo avançou para ela com um papel de multa, que, pressurosa, se recusou a aceitar: "ó senhor, eu não quero nada disso, eu nunca tive sorte com rifas!" Bem, tudo isto para dizer que apesar da minha falta de sorte, ao jogo, todas as semanas jogo no euromilhões. Jogo, pronto, e sempre o faço com sentimentos contraditórios – por um lado, sinto-me esperançosa, como as crianças que colocam o sapatinho na chaminé, na noite de Natal, para receber as prendas (acho que devo dar mais uma oportunidade à sorte), mas, por outro lado, lembro-me daquela minha amiga, que no dia dos namorados, deu ao marido um envelope, que continha um bilhete da lotaria, uma aposta do euromilhões e uma raspadinha. No fim de semana seguinte, depois deste ter conferido a sua sorte, disse à mulher: "afinal, tudo jogo nulo, não ganhei nada!" Resposta dela: "não podes ter sorte a tudo!" É com esta amálgama de sentimentos que eu jogo. E costumo jogar numa agência, se é assim que se pode chamar ao vão duma escada velha, cheia de jornais e livros, mal arrumados, situada na baixa de Coimbra, onde reina um velho senhor de 89 anos, com quem fiz amizade. Gosto de lá ir e conversar com ele - tem uma figura bizarra, dado que o seu corpo, já de tão curvado, adquiriu a forma de meia lua. Quando lhe perguntei porque não se reformava, ficou quase zangado, que nem pensar nisso, que gostava muito de trabalhar e que se sentia muito bem. Até me contou que tinha um segredo para a sua vitalidade e que nem sequer se constipava, pois, todos as manhãs, ele e a mulher (de 90 anos), tomavam, juntamente com o leite, uma colher duma mistura feita com alho moído e vinho branco. Segundo ele, esta "beberragem" é fonte de saúde e vida. Tínhamos feito um contracto: preenchíamos o boletim a meias e, se me saísse alguma coisa, dava-lhe 10%! Entretanto, todas as semanas nos ríamos da minha falta de sorte, mas continuámos aquele ritual até há duas semanas atrás. Pois é, a verdade é que tenho passado por lá, e encontro a porta da agência fechada! Estou inquieta e preocupada, o que terá acontecido ao senhor H.? Faz-me falta aquela conversa à quarta-feira e angustia-me o facto de não ter com quem dividir os números e as estrelas, que era a única coisa que tínhamos para dividir.
Publicado aqui, no sítio do costume.
3 Comments:
Está muito gira a tua crónica, Fátima. Mas...no "aqui", é outra visão!
admiro acima de tudo a humanidade das tuas crónicas e a forma absolutamente sincera e lúcida com que as (d)escreves. no regresso vim aqui visitar-te e gostei. vou manter-me tua leitora atenta. rc
Está mesmo bom!
Fátima, não sei quando e também não me vou dar ao trabalho de procurar, mas já nos tinhas oferecido algo deste género......diria crónica mas a rondar o "short story."
Ehnapá, escreve mais coisas dessas. Lindo!
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