De quando a crise nem se chamava assim
No léxico actual há uma palavra, melhor dizendo, um conceito, que é usado e abusado em todos os momentos e em todos os contextos: Crise. Anda na boca de toda a gente e serve para explicar tudo - o que se tem, o que se não tem, o que se teve, o que se perdeu, o que se ganhou, sim, porque, como se tem visto, há quem ganhe e muito. Tropeço constantemente no conceito, e, no entanto, quando penso no passado, chego à conclusão, que, desde pequena, sempre vivi em crise. Lembro-me sim, que também havia fome, miséria, desemprego, doenças, guerras, necessidades e injustiças, só que, nessa época, não se chamava desta forma e ninguém falava em crise, pensava-se que a vida era assim mesmo...
Nasci em Almalaguês que dista de Coimbra 12 Km, em plena era Salazarista, e vivi lá os primeiros treze anos de vida -, 12 Km é muito perto da cidade de Coimbra, não é verdade? Pois, mas, naquele tempo, em que não havia estradas, nem meios de transporte, nem jornais, nem televisão, nem escolaridade obrigatória, nem subsídio de desemprego, nem creches, nem Cento de Saúde, nem reformas, nem "Europa", nem nada, ou quase nada, Almalaguês, era tão interior, tão atrasada, tão remota, como a mais recôndita aldeia de Trás-os-Montes, mas ninguém falava em crise, pensava-se que a vida era assim mesmo...
Os homens cavavam a terra com a enxada e os que não tinham terra própria trabalhavam por conta de outros, se houvesse trabalho, é claro; as mulheres ajudavam no campo, e, pela noite dentro e nos dias de muita chuva, teciam colchas e tapetes, no tear, para ir vender às senhoras da cidade; as crianças mais velhas ajudavam a criar os mais novos e também trabalhavam no campo, não existia a noção de “trabalho infantil”, todos trabalhavam e era se queriam comer (na casa deste "home", quem não trabalha não come), mas ninguém falava em crise, pensava-se que a vida era assim mesmo...
Havia Escola -, a Feminina e a Masculina, mas as raparigas não precisavam (nem convinha), que fizessem a 4ª classe, bastava que soubessem ler e olhe lá! Naquela aldeia cheia de crianças e consequentemente de raparigas, no ano em que eu fiz a 4ª classe, éramos quatro, apenas quatro, a saber: a filha do carteiro, a filha do açougueiro, a filha do merceeiro e, eu, a filha do enfermeiro (obrigada meu Pai!), mas ninguém falava em crise, pensava-se que a vida era assim mesmo...
A maior parte das pessoas, incluindo as crianças andavam descalças, e aqueles que tinham sapatos, quando os gastavam, mandavam pôr "meias solas", no Ângelo, o sapateiro remendão. Bem, no Inverno, andavam de tamancos - ainda hoje consigo ouvir aquele toc, toc, toc, pela Igreja acima, na missa do Galo, na noite de Natal, da Hildita, miúda que vivia perto da minha casa. Um dia, os outros miúdos (cruéis, como só as crianças) perguntaram-lhe: Hildita, quando é que te compram uns sapatos? Ela, a mais nova de oito filhos, na sua crédula inocência, respondeu: a minha Mãe já me disse, que, quando o rei fizer pagamento, compra-me uns sapatos! Mas ninguém falava em crise, pensava-se que a vida era assim mesmo...
Não se recebia prendas no Natal, mas, nessa noite, e no dia seguinte, comiamse (e como sabiam bem!) filhós de abóbora, cobertos com açúcar e canela, estreava-se uma roupinha nova, porque só havia duas ou três mudas de roupa: a do domingo e a da semana. Quando alguma coisa se puía ou encolhia, remendava-se e colocavam-se acrescentos (Maria remenda o teu pano que dura mais um ano, torna a remendar que torna a durar). Mas ninguém falava em crise, pensava-se que a vida era assim mesmo...
Nos dias de festa, matava-se uma galinha, mas só nos dias de festa, ou quando as mulheres davam à luz, aliás, dizia-se: quando um pobre come galinha, um dos dois está doente! De resto era sopa de feijão, temperada com um pedaço de carne de porco, conservado na salgadeira, ou então, uma posta de bacalhau, bem dividida pela família toda e, no tempo da sardinha, se esta fosse grande, era metade para cada filho. Mas ninguém falava em crise, pensava-se que a vida era assim mesmo...
Eu sei, que isto foi tudo no tempo em que o arco-íris ainda era a preto e branco e quero que fique bem claro que eu não tenho saudades do passado, não tenho mesmo. Não sou nada saudosista, e fico muito feliz pelas coisas terem evoluído no sentido do bem estar, da felicidade e do conhecimento humano, mas tenho memória e lembro-me de tudo muito bem, e hoje, quando vejo algumas pessoas dizer que há uma grande crise porque, “já nem tomo o pequeno almoço no café!”, penso como a crise, esta crise, é diferente da outra...
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Etiquetas: a crise
7 Comments:
Um excelente artigo. Realmente, hoje me dia, tudo é crise...enfim é o pais que temos e quem está há frente das decisões "importantes".
Como diria o outro, é tudo uma questão de valores. Há quem lhe: uns preferem numerário, outros ficam-se pela ética.
Palavras para quê?!...
E a minha avó teve 14 filhos, todos vingados (até demais alguns:)) na base de "uma sardinha pra sete".
Apesar de ser ainda um pouco verde em matéria de lembranças já tenho memória de uma crise diferente desta, vejo essa diferença até entre mim e os meus irmãos.
Mas confesso que, às vezes, me deixo levar pela crise que vivemos agora: dá vontade de ter tudo e já... Enfim, em minha defesa posso dizer que depois respiro fundo e penso: tem calma, ainda não é tarde!
belíssimo texto de memórias que em pequenas(!?) histórias nos levas a viajar no passado,reflectir o presente e ...procurar respostas para um melhor futuro. Ainda tenho esperança que os Homens deste País e dos outros acordem para as graves questões sociais, essas sim de uma dimensão devastadora. Gosto muito do que escreves e...Gosto muito de ti, minha grande amiga, Fátima
"todos trabalhavam e era se queriam comer (na casa deste "home", quem não trabalha não come)" (do texto)
Fátima, no meu tempo, nem todos trabalhavam. Os donos da ilha não trabalhavam e comiam do bom e do melhor.
Bravo, Fátima!
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