O marido da minha prima Alice
Nos anos 80, a minha prima Alice estava feliz – ia casar com o Laurindo. Estava tudo pronto: o vestido de noiva na última prova, a cozinheira contratada para o banquete, as cabeças de gado para a chanfana, já compradas, os pratos para o arroz doce, lavados e empilhados (na minha aldeia não há casamento sem arroz doce e chanfana) e os convites já tinham sido enviados. Um dia, muito perto da data marcada, fui lá à aldeia e encontrei-a por acaso e ela, preocupada, mostrou-me umas manchas escuras que lhe tinham aparecido nas pernas. Eu não gostei nada do que vi e trouxe-a para Coimbra, para fazer umas análises, ao sangue. No dia seguinte o médico mandou-a chamar para repetir o hemograma. Depois, nesse mesmo dia, mandou chamar o pai e disse-lhe que a Alice tinha de ser internada. Ainda o estou a ver, destroçado e sem chão (enquanto Alice, ainda sem perceber bem o que lhe estava a acontecer, chorava), a dizer ao médico que a filha não podia ser internada, porque estava para casar. O médico explicou-lhes que isso não ia acontecer, porque ela contraíra uma leucemia e tinha de ser internada, urgentemente. E foi internada, como tinha que ser e cumpriu aquele conhecido e doloroso calvário dos ciclos de quimioterapias, das recidivas e de mais quimioterapias, das alopécias, dos lábios rebentados, de mais quimioterapia e nada de melhorar, mas, o noivo, o Laurindo, sempre que o trabalho lhe permitia, lá estava no Hospital, junto dela. Um dia, o pai de Alice, homem simples e prático, chamou-o à parte e, com a morte na alma, disse-lhe que ele era muito novo, tinha a vida toda pela frente, que fosse tratar da vida, arranjar outra mulher e casar, porque a filha, a Alice, estava perdida. O Laurindo, ofendido, disse-lhe que nem pensar nisso, enquanto a Alice fosse viva ele estaria ao lado dela, se ela morresse então pensaria em qualquer coisa, mas, agora, ficava ali, só queria pensar nela. Comoveu-me a grandeza dele e aquele amor incondicional. Conheço muitos casos em que o namoro ou mesmo o casamento “foram à vida”, quando tiveram que lidar com uma doença daquele tipo. Alice não melhorou tão depressa como desejávamos, levou anos a entrar e sair do hospital, mas, um dia, em desespero de causa, disse ao médico que estava cansada daquilo tudo: “ou viver ou morrer, quero fazer um transplante de medula!” O médico avisou-a dos riscos que corria, que até podia não resultar, que podia morrer, etc., mas ela não quis saber, estava decidida a arriscar tudo e, encontrada, num irmão, medula compatível, lá foi para um hospital em Paris, fazer o transplante (naquela altura ainda não se faziam cá). O transplante correu bem e, depois de mais uma “eternidade” no hospital, Alice regressou curada e casou com o Laurindo. Isto já lá vão cerca de 20 anos. Gosto muito daqueles dois, e às vezes digo-lhe: “tu, minha menina, tens um bom Homem”, ao que ela returque: “o teu também não é mau, atura-te!” Sinceramente, nunca percebi o que ela quer dizer com isto!
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3 Comments:
Conto muito giro, com um final perfeito! O final do final também é encantador...
Sim, Fátima, a cada conto mais sensibilidade e uma "alma" generosa à flor da pele.Gosto da inteligente "ingenuidade", retrato vivo do sentir , com que escreves as tuas crónicas.fico à espera das próximas. Sou fã. rc
Gostei muito! =) cada vez mais fã das cronicas! tambem nao sei o que ela quer dizer com isso, mas de certeza nao e ma coisa porque nao e dificil "aturar-te"! =)
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