Roubada e traída
Sinto-me roubada e traída. Traída sim, e, mal paga, literalmente. Não, não é o que estão a pensar: dessas traições, já não sofro, há pelo menos 30 anos, que eu saiba... Traída, porque acreditei que se trabalhasse, estudasse e me esforçasse, um dia seria compensada. Eu sei, eu sei - mentalidade Judaico/Cristã, "sofre, trabalha, sacrifica-te e ganharás o céu". Claro que eu não queria ganhar o céu, não sou assim tão ambiciosa, vinda de família pobre, queria, pura e simplesmente, ganhar o suficiente para ter uma vida decente, e uma velhice confortável. E, acreditando nisso, lá trabalhei, como a formiga da fábula - aos dezoito anos, com a 4ª classe, comecei a estudar de noite, porque, de dia tinha de fazer de dona de casa – a minha Mãe morreu quando eu tinha treze anos, e com três irmãos mais novos para cuidar, fui a gata borralheira, lá de casa, com direito a muito pouco. Foi assim que fiz o primeiro e o segundo ciclo e depois tirei um curso técnico. Trabalhei no laboratório duma fábrica durante seis anos e continuei a estudar. Entretanto, tive a sorte de mudar para um laboratório hospitalar que funcionava 24 sobre 24 horas, e aí acabei licenciatura e Mestrado. Para poder ir às aulas da faculdade, fiz os horários nocturnos, que me pertenciam e os que outros não queriam. Trabalhei sábados, domingos, feriados, noites e dias de Natal e de Fim de Ano. Penosas. Depois mudei de trabalho, fui Directora e Professora numa Escola Superior de Tecnologia da Saúde. Também aí dei o meu melhor. Sem me considerar diferente, nem superior a outras pessoas, que fizeram sacrifícios semelhantes aos meus, tinha sempre uma esperança, um objectivo: amanhã será melhor! Hoje não posso, pensava eu, mas um dia hei-de ter tempo e dinheiro para viver melhor, ler os livros que não pude ler e ver os filmes que não vi, e, viajar, viajar por horizontes apenas sonhados! E pronto, vivi nessa ilusão e nesse desiderato todos os trinta e seis anos em que trabalhei e fiz descontos. E agora, vêm estes senhores, que, como diz o outro – “não sabem nada da vida”, e, se calhar nunca fizeram sacrifício nenhum para ter tudo o que têm, e subtraem-me, uma grande parte da aposentação. Eu, como tantos outros que cumpriram, que pagaram os impostos e todas as coisas que adquiriram, sinto-me roubada e traída!
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