Talvez por causa da diferença manifestada, a loucura é sempre vista com estranheza e desconfiança por parte da comunidade e da família daqueles que rodeiam o dito "louco". É como se existisse uma cisão, uma espécie de separação, entre o "louco" ou "marginal do sistema" e os ditos "normais", demarcando-se uns dos outros, não só pelos actos, mas também pelas palavras, pelo discurso. Como diz Foucault:"
A história da loucura é a história da inserção dos discursos desordenados e desrazoáveis na sociedade (…) era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco", e, portanto, "
elas eram o lugar onde se exercia a separação".
Não pretendo fazer graça com isto, mas a verdade é que, desde muito cedo, me habituei ao convívio com "loucos", mas sempre os vi como seres que fazem parte da vida normal das pessoas. Ainda hoje o que mais me impressiona e aflige, é pensar, que, em muitos casos, há apenas uma ténue linha de separação entre a loucura e a sanidade mental. Na minha aldeia, quando eu era pequena, havia um "louco", muito popular, que era conhecido como o "Chico Facas". - tinha uma idade indefinida, talvez por volta dos trinta, nem sei bem. Vivia sozinho, e normalmente calmo, sobrevivia da caridade alheia e dos "recados" que fazia a troco dumas moedas ou mesmo de comida, mas, de vez em quando, lá endoidava de vez e ficava mesmo "louco varrido" - bastava que alguém lhe chamasse "facas", ou "facadas" e era vê-lo correr atrás dos garotos ou até dos adultos, que assim o provocavam, enquanto proferia os mais variados palavrões e impropérios.
Aqui, em Coimbra, na rua onde eu moro, há um outro "louco", relativamente parecido: é muito alto, tem, agora, cerca de sessenta anos e veste-se, sempre, de fato escuro e boné preto. O "António Doido", como é conhecido por aqui, tem uma estranha mania ou obsessão (será paranóia?), não sei bem como lhe chamar - só sei que se levanta de madrugada, e vai atravessando a rua, dum lado ao outro, correndo aos zig- zags e tocando com a mão, em todas as casas e portas, porque tem de ser o primeiro a chegar a todos aqueles locais identificados por ele e a "marcar" aquele espaço. Se alguém se lhe adianta e chega antes dele, e, por exemplo, abre uma porta, reage mal e lá diz, também, os clássicos palavrões. Ao princípio, quando mudei para esta rua, tinha medo dele, daquela estranha figura, toda vestida de negro, correndo esgrouviada e obsessivamente, dum lado para o outro, enquanto murmura palavras estranhas, mas o Sr. do supermercado, disse-me que não, que não faz mal a ninguém, Ficou assim depois de vir da guerra de África.
Mas, de todos os loucos da minha agenda, e tenho bastantes, há um, aliás uma, que ficou gravada, a fogo, na minha mente e no meu coração. Era uma miúda com menos de dezoito anos, que eu vi, há cerca de dez anos atrás, numa freguesia (de que não vou dizer o nome), de joelhos pela rua, a chorar alto e a pedir perdão a quem quer que passasse. Contaram-me que tinha engravidado e o namorado, quando soube da gravidez, abandonou-a. Os Pais obrigaram-na a abortar. Não quero parecer cínica, mas compreendo-a. Acho que a loucura foi uma boa solução para ela.